A canção Maria, Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant, foi cantada em coro pelas quase 4 mil credenciadas na 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (5ª CNPM), em Brasília, nesta quarta-feira (1º), último dia da mobilização nacional. Juntas, elas homenagearam a força e a resiliência das mulheres brasileiras.
Com o tema Mais Democracia, Mais Igualdade, Mais Conquistas para Todas, a 5ª CNPM debateu questões como o enfrentamento às desigualdades sociais, econômicas e raciais; fortalecimento das mulheres em espaços de poder e decisão; combate a todos os tipos de violência de gênero, políticas de cuidado.
Multifacetadas
Pelos corredores do evento, o novo conceito de “mulheridades” foi amplamente difundido para informar e destacar a pluralidade e a diversidade de identidades das mulheres que vivem no Brasil e suas experiências.
Mulheres negras, com deficiência, LBTs [lésbicas, bissexuais e transgêneras], indígenas, quilombolas, de povos e comunidades tradicionais, jovens, idosas, mães atípicas, mulheres das cidades, do campo e das águas, ciganas, migrantes e refugiadas enviaram suas representações. Uma a uma encarregada de lutar por direitos e de dar visibilidade às suas causas.
De Jundiaí (SP), Mayara Alice Zambon pediu respeito a toda diversidade, a toda a ‘mulheridade’. Ela se descreve como mulher cis, pansexual. Mayara acredita no feminismo interseccional, abordagem que reconhece diferentes eixos de opressão que se interligam, como raça, sexualidade, deficiência e classe econômica. “Mulheres são mulheres em sua totalidade. Ninguém nasce [mulher]. Se torna uma”, parafraseando a escritora e feminista francesa, Simone de Beauvoir.
Já a enfermeira Dalvilene Cardoso, que integra o coletivo de mulheres com deficiência de São Luís do Maranhão, considera-se uma “mulher de fibra”. O punho dela levanta pelo fim da escala de trabalho 6×1, da violência de gênero, e pela valorização de profissão dentro da política de cuidados da sociedade.
“Viva as mulheres. Quero menos violência, não anistia [aos golpistas], mais democracia, mais respeito e, claro, mais educação. Somente por meio da educação nos tornaremos mulheres decididas e determinadas”, entende Dalvilene.
Em uma roda de mulheres cadeirantes, na entrada do prédio da conferência, a produtora cultural de São José do Rio Preto (SP), Vanessa Cornélio, se agiganta contra o capacitismo, que é a discriminação e o preconceito contra pessoas com deficiência (PCD), baseado erroneamente na crença de que são inferiores e incapazes.
“Precisamos de políticas educacionais que atinjam a população para desmistificar e tirar a imagem e o rótulo pejorativo e pesado de uma dependência. E ainda que as pessoas nos reconheçam para além da deficiência visível.”
Vanessa completa com o modo que é vista em sociedade. “Muitas vezes, somos tratadas com infantilização, não reconhecem o nosso potencial. É um leão por dia, todos os dias. Temos que nos colocar e explicar quem somos”, lastima.
A indígena Magna Caibé viajou 1,5 quilômetros (km) de Euclides da Cunha (BA) até a capital federal para trazer as demandas dos povos originários da Bahia. Ao relatar violências que as indígenas sofrem, Magna não admite que a violência masculina seja encarada como um fenômeno cultural e do patriarcado, onde os homens supostamente deteriam a autoridade e o poder sobre as mulheres.
“A violência não é cultural. Nossa cultura é a nossa ancestralidade, são nossas tradições. A mulher indígena não está acostumada a ser violentada. Eu vim aqui para falar “não” à cultura de violência das mulheres indígenas.”
A professora Maria Elisângela Santos, de Aracaju, quer uma sociedade justa e igualitária, frente à discriminação e ao racismo. “As mulheres negras querem nessa conferência que todos estejam colocados em uma linha tênue, onde nenhuma mulher tenha mais e outras menos. A mesma saúde que é dada a uma mulher não-negra, deve ser dada a outra mulher negra, a uma mulher trans, independentemente da sua raça e da sua religião.”
A conferencista ainda questiona o fato de que a média salarial de uma mulher negra pode ser cerca de 50% menor que a de um homem branco.
“As mulheres negras se encontram abaixo da pirâmide salarial. Brigo por um espaço mais justo, porque nós trabalhamos igualmente aos demais, cuidamos de casa, da família, na maioria das vezes somos mães-solos. Por enquanto, sororidade, está sendo somente uma palavra bonita.”
A estudante de direito Ana Eva dos Santos, de 24 anos, reconhece que sofre com a transfobia diariamente, mas diz que conta com o apoio materno. Ana Eva é voluntária do projeto solidário Associação Gold, casa de acolhimento de pessoas LGBTQIA+, em situação de vulnerabilidade socioeconômica.
“A conferência é um espaço de diálogo democrático para discutir políticas públicas e espaço de escuta para o Estado entender nossas demandas, enquanto pessoas trans, em situação de rua, dentro das diversas interseccionalidades: de pessoas negras, com deficiências e com as nossas mulheridades.”
Iyá Nifá Ifálere, sacerdotisa de umbanda, religião que escolheu há 35, trouxe com orgulho na mala as mesmas vestes que usa no terreiro de Cuiabá. No Distrito Federal, ela circula na conferência para marca posição e exigir respeito às mães de axé, que ela diz serem invisibilizadas.
“Tentaram nos calar. Sofremos muito, principalmente pelas nossas vestes, não somos aceitas perante a sociedade, tudo isso precisa ser desmistificado. Porque essa é a minha identidade, eu sou uma mulher de axé, eu carrego meu Axé e sem ele não sou ninguém.”
A secretária municipal da Mulher de Tutóia (MA), Cristiana Rocha Diniz, relata que mesmo tendo implantado o programa Patrulha Maria da Penha, de segurança pública, o município não tem recursos públicos para proteger as mulheres vítimas de violência.
“Vejo nas localidades que a secretaria da mulher em si, só tem o nome. Não temos verbas para quebrar essa violência. A mulher do interior sofre violência e não há um transporte para socorrê-la. Existe muita política, sim. Mas cadê as capacitações para os gestores? Cadê o material que precisamos para trabalhar? Nós não temos”, indigna-se.
E mesmo diante de tantas divergências de pontos de vista e debates calorosos, Francine Gagliotti veio de São Paulo representar os interesses das milhares de mulheres que não puderam se deslocar até Brasília para participar da mobilização nacional.
“Espero que as políticas sejam aprovadas para que cheguem às mulheres que não tem possibilidade de estar aqui. Tudo tem que chegar para todas as mulheres do país, principalmente aquela que só sobrevive, só trabalha 8 e até 12 horas por dia. A gente tá aqui para defender também essas mulheres.”
Voz coletiva
“Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre. Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria, mistura a dor e a alegria.” Essa espécie de hino atemporal representou o anseio coletivo dos segmentos sociais, os movimentos feministas, gestoras públicas, acadêmicas, organizações de mulheres e outros setores da sociedade civil.
No fim, várias frentes comprometidas com a mesmas pautas; igualdade e equidade de gênero; enfrentamento à violência, discriminação e racismo; universalidade e acesso às políticas públicas; participação ativa das mulheres em todas as fases das políticas públicas.
As demandas trazidas dos diversos territórios das etapas anteriores à conferência nacional foram analisadas durante três dias, nesta semana, em Brasília, e votadas pelas delegadas credenciadas na tarde desta quarta-feira
(1º). As propostas deliberadas vão contribuir para o fortalecimento e aprimoramento do Plano Nacional de Políticas Públicas para Mulheres, para orientar o governo federal na elaboração das políticas para todas as mais de 100 milhões de brasileiras.
A ministra das Mulheres, Marcia Lopes, defende que a conferência nacional não se encerre, depois de tantos reencontros, pois a mobilização das mulheres por direitos e políticas públicas continuam nas comunidades das participantes que voltam a seus territórios de luta. “Apesar de concluir a 5ª Conferência Nacional de Política para as Mulheres, que a gente entenda e tenha consciência que esta conferência não acaba aqui, não acaba hoje. Ela tem que continuar até o início da realização da 6ª Conferência Nacional de Política para as Mulheres”.
Fonte: Agência Brasil